Alegoria da vida, Giorgio Ghisi

Alegoria da vida

Alegoria da vida 850 480 V.M. Kwen Khan Khu

Caríssimos leitores e leitoras:

Contenta-me enviar-lhes esta nova gravura que, segundo os estudiosos, constitui um dos mais enigmáticos que se realizaram durante séculos.

O autor intitulou essa obra como…

…ALEGORIA DA VIDA

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Imagem completa indicando a numeração dos detalhes

É atribuído a Giorgio Ghisi, que o teria desenhado no ano 1561. É seu estampado mais famoso. Alguns chamaram essa gravura de O sonho de Rafael.

«Essa é uma das gravuras italianas mais impressionantes e misteriosas. Ninguém logrou ainda explicar completamente seu simbolismo, mas parece claro que representa o perigoso caminho através do mar em uma embarcação esburacada, com rochas e bestas selvagens à espreita que se encontram ante o sábio ─na esquerda─ em sua busca da Verdade.

Os dois versos que se encontram a seus pés estão tomados da Eneida de Virgílio, livro VI, versículos 617 e 95.

O maior paradoxo que apresenta a impressão se encontra no texto em latim da parte inferior esquerda: RAPHAELIS VRBINATIS INVENTVM. PHILIPPVS DATVS ANIMI GRATIA FIERI IVSSIT, ‘A invenção de Rafael de Urbino. Filippo Dati ordenou fazer em agradecimento’. No século XVI ter-se-ia entendido que isso significava que Rafael desenhou ─“inventou”─ a composição, que depois teria sido gravada por Ghisi, um gravador de Mântua que costumava trabalhar segundo os desenhos de outros. Mas, como os comentaristas reconheceram faz muito tempo, a composição não pôde ter sido desenhada por Rafael, o qual morreu em 1520. O estilo da gravura é muito mais tardia, e o único vínculo com Rafael está na posição do homem, a qual deriva de um dos filósofos da escola de Atenas.

Não está totalmente claro por que Ghisi deveu ter colocado em seu desenho uma inscrição que devia saber que era enganosa, por não dizer falsa. Foi para enganar os colecionistas ou tem uma brincadeira mais esotérica, ou privada oculta, por parte de Dati, o homem que o encomendou? Responder essa pergunta é complicado pelo fato de ninguém logrou descobrir ainda quem foi Dati».

Outra descrição da gravura comenta:

«Uma embarcação naufragou em um rio turbulento e rochoso, no primeiro plano. Na esquerda, um homem barbado, que se apoia no tronco de uma árvore morta, com um morcego, duas corujas e um corvo por cima dele. Debaixo da árvore uma rocha e uma placa com uma inscrição da Eneida de Virgílio, livro VI, versículo 617: SEDET AETERNVM QVI SEDEBIT IFOELIX, ‘Está sentado e estará sentado por sempre’. A mensagem refere-se a Teseu, o qual ficou atrapado no hades por suas transgressões luxuriosas ─o versículo diz: “Uma rocha enorme fazem rodar alguns e a rádios de rodas atados penduram; está sentado e estará sentado por sempre Teseu infeliz…”─. Seu barco não está em condições de cruzar o rio Estix. O homem está rodeado de criaturas monstruosas que olham para ele venenosamente. Sua única esperança parece provir da mulher parecida com uma deusa, com uma lança longa que aparece à direta e que tem debaixo de seu pé uma placa com a mensagem: TV NE CEDE MALIS: SED CONTRA AVDENTIOR ITO, ‘Não ceda ante o mal, mas enfrente-o com mais audácia’. Outra tradução dada ao texto é: ‘Não se renda perante a adversidade, mas enfrente-a com mais audácia’».

O significado da mulher que aparece na gravura para resgatar o filósofo poderia ser a divina Minerva ─Isis, Stella Maris, a Divina Mãe─.

Na placa na qual se vê no centro do barco, escreve-se: GIORGIVS GHISI MANT. F 1.5.6.1., o que deve ser a assinatura do autor e a data.

Placa na qual se vê a assinatura do autor : GIORGIVS GHISI

Na parte superior esquerda o desenho tem alguns símbolos intrigantes, um fio de luz serpentino que acaba na parte de cima, onde apenas se distinguem três rostos, três formas humanas ─ver detalhe 1─ representativas da força de Deus, que alegorizam os três sopros do Eterno, os três sopros divinos: santo afirmar, santo negar e santo conciliar.

Tais forças divinas observam faz milhões de anos o destino das raças humanas, o destino das mesmas segundo a eleição que essas raças fazem com o propósito da existência que lhes foi dada.

Para continuar no estudo desta críptica gravura diremos que, certamente, o que apreciamos ante tudo é o contraste entre dois mundos ou duas realidades, uma que nos assinala uma zona paradisíaca e outra que nos mostra um verdadeiro caos.

Na área caótica encontramos primeiramente um ancião ─um devoto do Caminho Secreto─ apoiado sobre uma árvore seca, símbolo da decadência sexual, como bem a definira a arte transmutatória. Dito ancião contempla o outro lado da vida, lá onde ele quisera estar.

Lembremos, amigos e amigas, algumas palavras alusivas a essa árvore seca de nossa gravura. Essas palavras provêm do grande Adepto Fulcanelli:

«A árvore seca é um símbolo dos metais usuais reduzidos de seus minerais e fundidos, aos que as altas temperaturas dos fornos metalúrgicos fizeram perder a atividade que possuíam em seu jazigo natural. Por isso, os filósofos qualificam-nos de mortos e os reconhecem como impróprios para o trabalho da Obra, até estiverem revivificados ou reincrudados, segundo o termo consagrado, por esse fogo interno que não os abandona jamais por completo».

«O tronco do qual se apoderou esse artesão de outra idade, apenas parece destinado a servir nada mais que a seu gênio industrioso. E, porém, trata-se de nossa árvore seca, a própria que teve a honra de dar seu nome a uma das ruas mais velhas de Paris… […] A árvore seca era uma lembrança de Palestina, e era a erva plantada junto a Hebrom, que, após ter sido, desde o começo do mundo, “verde e com folhas”, perdeu sua folhagem no dia em que Nosso Senhor morreu na cruz, e então secou, mas “para esverdear quando um senhor, príncipe de Ocidente, alcance a Terra de Promissão com a ajuda dos cristãos e faça cantar missa sob essa árvore seca”.

Essa árvore resseca que brota da rocha árida vê-se figurado na última lâmina da Art du Potier, mas se representou coberta de folhas e de frutos, com uma bandeirola que leva a divisa Sic in sterili. Também se encontra esculpida na bela porta da catedral de Limoges, o mesmo que em um motivo tetralobulado do basamento de Amiens».

A área na que dita personagem se encontra é uma pequena ilhota rodeada de reptis e animais bastante desagradáveis. Isso evidencia, a luz da Cabala simbólica, o mundinho do Eu com todas suas aberrações. Esse é o porquê dessas criaturas reptilianas, draconianas ou exoticamente malignas que rodeiam a tal devoto. Essa é a pluralidade de nosso Ego animal.

Perto da árvore na qual se apoia, observa-se uma espécie de bosque contornado por uma espécie de corda ou de fogo, que se eleva para terminar conectando-se nada menos que com uma estrela ─ver detalhe 1─. Essa é a estrela interior que sempre nos sorriu. É óbvio que esse fogo que serpenteia ascendendo é, sem qualquer dúvida, a conexão da humanidade, faz séculos ou milênios, com o Kether cabalístico. Inquestionavelmente, devido ao estado de Consciência adormecida, nossa humanidade ignora sua conexão com essa majestosa força. Isso é devido a que a espécie humana tem um status que a mantém encurralada pelo destino, contemplando com tristeza esse outro mundo que pôde ter alcançado e não conseguiu. Por isso, perto do ancião pode ver-se uma barca quebrada, destroçada, alegoria do desdém com o qual temos tratado o Arcano A.Z.F. ─nossa barca ou arca─.

Ali mesmo, dentro dessa área, observa-se um tronco pelo qual sobe a estela de luz de que falamos anteriormente, e muito perto daí observa-se a figura de Lúcifer ─ver detalhe 2─. Temos que lembrar que Lúcifer é o dador do fogo e não poderia faltar dentro do conglomerado de símbolos que formam parte dessa gravura. Sem o auxílio do Lúcifer, estaríamos perdidos no Caminho Secreto, pois ele nos dá o impulso sexual para continuar nossa travessia hermética.

Também próximo desse tronco podemos observar um leão alado. Tal leão é nosso Mercúrio Secreto unido a nosso Enxofre divino.   Essa é a junção necessária para que nosso composto mercurial enxofrado possa ir realizando em nosso interior a Grande Obra.

Na ilhota na qual se encontra o ancião simbólico, podem-se observar, fazendo um esforço de concentração, algumas criaturas. Por exemplo, ao pé da ilhota vemos um animal que não é outro senão o basilisco mitológico – ver detalhe 8 -, criatura que muitos tratados alquimistas assinalam como altamente perniciosa, pois fala do mau tratamento que podemos dar a nosso Mercúrio, o elemento volátil. Dito basilisco, como sempre foi mostrado, tem garras de ave de rapina, cola de verme e asas diferentes das de um galo.

Do mesmo modo, podemos ver um sapo a pé da rocha ─ver detalhe 7─ com uma inscrição latina. Lembremos que o sapo ou a rã são o símbolo, entre muitas culturas ancestrais, da arte transmutatória ou arte alquímica. Basta lembrar da existência, nas ruínas do templo maior dos antigos astecas, nada menos que de uma piscina que dedicaram às rãs, os mexicas, estando esculpidas em seu redor. Esse sapo de nossa gravura vai acompanhado de uma frase latina que diz deste modo: Sedet aeternum qve sedebit infoelix. A tradução dessa frase é a seguinte: ‘Está sentado e estará sentado sempre’. A erudita frase refere-se a Teseu, quem ficou, segundo a mitologia, atrapado no hades ─o inferno─ por suas transgressões sexuais. Porém, esse é o destino da humanidade fornicária que involuirá e ficará durante terríveis idades lá no avernus ou inferno paralisada durante milênios.

É bom assinalar que, sobre a pedra da frase antes citada, pode-se ver, porém, de forma diminuta, um escorpião ─ver detalhe 7─. O escorpião é o símbolo da constelação zodiacal do Escorpião. Tal signo rege a sexualidade na anatomia humana, e isso concorda com a frase que já mostramos e desvelamos antes.

Por outro lado, lá mesmo, nessa obscura trama, podem-se evidenciar três corujas. A coruja, na simbologia esotérica, adverte acerca da imperiosa necessidade de viver em estado de alerta permanente, a fim de capturar o EGO em ação, detectá-lo para estudar, compreender e eliminar com a oportuna assistência do Eterno Feminino divinal ─Stella Maris, Devi-Kundalini─, tal como ensina a Gnose.

Assim, assinalamos que entre essas estranhas criaturas que estamos mencionando, colado na roca, num de seus lados, está um morcego ─ver detalhe 5─. O morcego alude aos estados de trevas que inundam o psiquismo do mamífero racional.

É bom apreciar que, na trama obscura na qual se encontra o devoto, na parte superior da mesma, observam-se umas ruínas do que foi um coliseu ─ver detalhe 9─. Esse coliseu designa a vanglória humana que, cedo ou tarde, converte-se em ruínas, foi parte de um tempo e terminou em outro tempo.

Igualmente, convém comentar a nossos estimados leitores que nessa mesma trama obscura e perniciosa onde se encontram as corujas, também se pode apreciar um corvo ─ver detalhe 4─, e igualmente na parte inferior esquerda da gravura. O corvo, na alegoria esotérica, representa a morte de nossos agregados psicológicos. O corvo é associado a Saturno, e Saturno, na temática alquímica, alude, assinala ou aponta a morte, a putrefação das doentias entidades que constituem o Eu, o EGO, o Mim Mesmo, o Si Mesmo, etc., etc., etc.

Existe um arco-íris que separa o lado escuro da gravura desse outro lado mais luminoso. Esse arco-íris assinala a esperança que tem o homem terrenal para um dia converter-se no verdadeiro Homem Solar regenerado e desperto para as realidades superiores.

A um lado do dito arco-íris, podemos ver um sol que começa a levantar-se no horizonte. Esse sol é o novo dia, a aurora imortal à qual devemos saudar quando nossa natureza anímica tenha conquistado a Maestria no reino do Pai.

Nesse outro lado mais luminoso dessa obra artística, convém centrar-nos ante tudo na bela dama que leva uma lança em sua sinistra, enquanto com sua destra está tocando uma esplêndida palmeira. Tal mulher não é outra que a Divina Senhora de nossos fogos internos, chamada em diversas culturas com muitos variados nomes, por exemplo: Minerva, Atena, Sophia, Aka, Astarte, Marah, Maria, etc., etc., etc. Ela é quem extirpa da nossa anatomia espiritual os demônios que têm encarcerada nossa Consciência, com essa lança de caráter fálico. Obviamente, Ela está ligada a nosso REAL SER porque, em si mesma é uma das partes autônomas e autoconscientes do mesmo. É Ela a própria assinatura astral do Fogo Secreto, e por isso é chamada, também no oriente, de Devi-Kundalini, a serpente ígnea de nossos mágicos poderes. Os gnósticos chamamos de RAM-IO, palavra que se converte, também, no mantra com o qual a evocamos.

No topo dessa palmeira, símbolo de nosso próprio SER, podem-se ver três querubins ─detalhe 10─. Esses três querubins são a representação das três forças primordiais da criação: Santo Afirmar, Santo Negar e Santo Conciliar. Eis aí as três forças benditas que estão na origem de tudo o criado, desde o amanhecer dos tempos. Um de tais querubins tem um arco temperado entre suas mãos, apontando com sua flecha o sábio ou filósofo do Caminho Secreto, para incitá-lo a realizar a travessia rumo à eternidade, arriscando tudo nela.

Mais além da cena que nos fala do Eterno Feminino divinal e dos três querubins, observamos facilmente uma cidadela, e dentro desse enquadramento aparece perante nossos olhos um centauro que leva em uma de suas mãos ─à direita─ um arco. Essa é a imagem do signo zodiacal que alude o signo de Sagitário. O interessante dessa imagem é o fato de representar o homem, que deve lançar a flecha de seus anelos para os céus de Consciência, para a divindade, solicitando auxílio para voltar ao ponto de partida original.

Igualmente, como parte desse lado luminoso de nossa gravura, no alto vemos uma pomba que encarna o Espírito Santo, que sempre está disposto a nos resgatar do mundo das ilusões para nos introduzir no universo das grandes realidades. Nossa pomba leva em seu bico uma fibra de palha para nos mostrar que sempre a força do Terceiro Logos está trabalhando, buscando consertar-nos animicamente nosso ninho para nos proteger contra as trevas. Do mesmo modo, perto dos querubins, vemos no topo de uma árvore, uma cegonha. A cegonha, em si , representou em todo momento a maternidade divina. Com isso, promete nosso regresso à infância ou inocência primordial, que perdemos a causa de nossa queda angélica, segundo as Sagradas Escrituras. Tal cegonha, além de ter seus pintinhos, leva numa de suas patas um ovo. Isso é para indicar que a força do Terceiro Logos sempre está criando novas vidas e novas formas materiais e espirituais.

Como se fosse pouco, na altura da cabeça da mulher mitológica de que já falamos antes, podemos apreciar, entre umas árvores, um elefante. Esse extraordinário mamífero, em Gnosticismo puro e simbologia transcendental, assinala ao Logos primordial, nosso Kether, a força do Ancião dos Dias, que sempre vela por nosso percurso pelo carrossel de nossas existências.

Por outro lado, temos que dizer a nossos estimados leitores que, na trama obscura na qual se encontra o ancião devoto, vemos nas suas costas as seguintes imagens ─detalhe 2─, ou seja:

  1. Um anjo.
  2. Um centauro que leva um maço entre suas mãos.
  3. Uma criatura que parece um tigre, mas com seios nas suas costas e úberes como de vaca.

O que é isso? Resposta: O anjo representa as forças divinas que se movem entre as trevas para resgatar as almas extraviadas. Assim, o centauro com o maço alegoriza ao homem vulgar e suas paixões violentas. A criatura com úberes e seios nas costas são deformações que vão tendo nossos agregados psicológicos à medida que vão involucionando através dos milênios.

Acrescento, para finalizar, algumas frases que considero oportunas para refletir:

«Para o sábio, nenhuma verdade é amarga».
Maurice Maeterlinck

«Cada verdade que aparece na terra é selada com o sangue de um mártir ou de um profeta».
Lamartine

«Enfim, enfim, a verdade padece, mas não perece. São duras de sofrer as verdades».
Santa Teresa

«Todos os homens buscam a verdade, mas só Deus sabe quem a encontrou».
Chesterfield

«O signo mais evidente de que se encontrou a verdade, é a paz interior».
Amado Nervo

«A verdade é uma urtiga: quem a roça apenas se pica; quem a pega com força e resolução não faz nada».
M. G. Saphir

SURSUM CORDA
─‘Corações em alto’─

KWEN KHAN KHU